24 outubro 2006

sorrisos suspensos

Deito-me na cama.
Gosto do toque. As pernas agora despidas tocam o frio dos lençois. Gosto dessa sensação.
Encolho-me. Viro-me de cabeça para cima e tento encontrar estrelas no meu tecto nu.
Sinto-me pequeno. Inútil.
Num caos sem rumo arrasto-me preguiçosamente. Sou um aniaml de hábitos, por muito que me minta e diga o contrário.
Os dias não são novidade. As noites também não. Fecho-me na minha concha e através de fotogramas e notas sonho com vidas, texturas e sabores que não possuo.
Continuo deitado. E inútil. Gostava de ter um brilho. Gostava de ver um amigo triste a sorrir depois de falar com ele. Sou trapalhão na forma e conteúdo das minhas palavras. Acho que não sou uma pessoa para falar. Nem sei se serei para escrever. Nem sei se serei uma Pessoa. Talvez seja só um mau corpo.
Gosto de sorrir. Gostava que o meu sorriso tivesse o poder do aconchego de um abraço amigo. Gostava que ele fosse quente. Gostava que ele fosse bonito e proporcionasse nos outros, nos amigos, aquele sorriso que temos quando somos crianças e que poucos mantêm na transição de idades, mentalidades e porque não estatutos.
(Há estatutos na nossa sociedade ocidental que parecem ter como pré-requisito a não existência de sorrisos. Porquê este pré-requisito? Porquê estes estatutos? Fará isto sentido para alguém?)
Gosto do silêncio. Desde criança que o conheço. Já tivemos grandes e ruidosas conversas. No silêncio claro está.
A calma que por vezes o silêncio me traz é o que eu sonho poder fazer com o sorriso, mas apenas posso sonhar.
Só há uma coisa que me chateia mais, que me irrita mais e que me deixa mais em baixo do que um dia que me corre pessimamente.
É ver alguém triste, especialmente os amigos ou aquelas pessoas a quem me ligo apenas por um detalhe minucioso, e não ter capacidade para os fazer sorrir. Para por momentos os fazer esquecer a tristeza e por na sua cara um sorriso, ainda que misturado com lágrimas. São bonitas as pessoas que sorriem, enquanto as lágrimas ainda percorrem a pele do rosto, efémeros momentos antes de limpar a cara e dar aquele novo primeiro passo.
Gostava de ter um brilho desses.
Fica um vazio em mim sempre que passo por uma circunstância dessas. Desejo do fundo daquilo que muitos chamam coração poder melhorar a situação. Não é o coração, mas é fundo.
É fundo e escuro. É o meu centro descentrado, um pseudo-lugar temível e terrível, o qual tenho medo de mostrar porque é um lugar nu. Sou apenas eu numa sala vazia. E nas paredes não há nada. Não há as mascaras que uso no mundo exterior no dia a dia. Não há os esconderijos que dispomos cá fora.
Ali sou só eu. Um amontoar de defeitos e pseudo-qualidades. A minha música, os meus filmes, as imagens que me fazem. Sou só eu. Todas as minhas facetas e personagens estão ali descriminadas. Em confronto. Todas as minhas paranóias, as minhas inseguranças... Aqui, neste lugar, ao contrário do mundo exterior a minha loucura não é controlada. Aqui há gritos mudos a todo o instante.
É um lugar escuro, fundo e feio. Mas é também o único sítio do meu corpo que pode ser bonito.
É lá que tudo nasce. O mau e o bom. E é lá que tudo morre. É lá que nasce a vontade de vos ver a sorrir quando não estão bem. A vontade de vos levar para o meio da praia deserta e ficarmos a ouvir o mar e o vento, pois as suas palavras e o seu silêncio são reconfortantes.
Gostava que esta vontade conseguisse ser traduzida. E não me importa como, por palavras, abraços, sorrisos, chocolates, passeios... qualquer coisa.
Podia ser traduzido em qualquer linguagem inventada ou por inventar... desde que vos visse a sorrir e não me tivesse de deitar com esse peso em mim. Como agora.
Não sei transmitir o que sinto. É um ponto prévio.
Gostava de o saber fazer e além disso fazer de maneira a que quando vocês se fossem deitar, tivessem um sorriso ainda maior que o meu.

Resta-me a cama, a música e a tristeza de não vos ter feito sorrir hoje.

outubro 2006

09 outubro 2006

gotas de vida - o comboio

gotas de vida
pessoas e momentos fictícios. pseudo-realidades que habitam uma mente.
episódios imaginários transcritos para o mundo material.

Empacotado na lata de sardinhas móvel a electricidade, sento-me confortavelmente.
A Ani DiFranco (en)canta-me.
A menina da voz rouca e a menina dos olhos verdes e profundos falam. Tenho que aumentar o volume para abafar as baboseiras que dizem.
No banco oposto em frente ao meu está uma menina de azul-turquesa (sim, sei o que é azul-turquesa) cujos olhos encantam. Não são verdes como os da menina na minha frente, são escuros mas têm vida. Causam em mim um magnetismo (que eu gosto). Em frente a ela, uma menina bonita, mesmo bonita. Figura esguia, vestida de tons escuros, com umas meias às riscas de tons laranja. Fascinou-me, ainda mais que os olhos grandes e magnéticos da menina de azul-turquesa. É bom encantarmo-nos assim, na ocasião, são encantamentos de circunstância. Mas muito deles não saem da cabeça. Gosto de ser assim. De me deixar encantar com a facilidade com que uma criança sorri.
Gosto de viver com a cabeça no ar, no mundo da lua, como muitos dizem. Gosto de encontrar todas aquelas personagens, com quem talvez nunca falarei, mas sei que troquei um sorriso ou um olhar. E às vezes mais não é preciso.
Perco noção do tempo enquanto divago por mim e em mim.
As meninas das baboseiras vão sair, chegou a estação delas. Agradeço, apesar daqueles olhos verdes e profundos (uma verdadeira tentação), pois agora as probabilidades de ouvir baboseiras diminuíram. (mas o caminho ainda nem a meio vai...)
A menina bonita também vai sair. Troco o último olhar e o primeiro correspondido.
É curioso como imaginamos vidas enquanto andamos de comboio. Apenas através de uam expressão.
A menina de azul-turquesa de olhar magnético parece triste, cansada. Alguém ou algo a terá magoado? (o alguém vem sempre primeiro, faz parte da nossa natureza magoar e ser magoados) Ou voltará a casa para o fim-de-semana prolongado que hoje começa? Possivelmente cansada após uma noite de excessos?

Quem sabe?... mas também, quem se interessa?